Na subida do morro (conto)

23/06/2010

Entrou no bar numa fúria irredutível. Mal olhou para os lados; andou a passos determinados em direção a Juvenal, que tomava pinga no balcão. E deu-lhe uma trombada magnífica nas costas.

“Na subida do morro me contaram”, começou Amoroso, “que você bateu na minha nega. Isso não é direito, bater numa mulher que não é tua.”

Como bom canalha, Juvenal sorriu. Foi um sorriso impecável.

E Amoroso continuou, metendo-lhe a mão no peito:

“Hoje, vim resolvido a te mandar para a cidade de pés juntos.”

“Calma, meu querido”, argumentou Juvenal, sem mudar a pose.  “A história não foi bem assim…”

Mas Amoroso logo o interrompeu:

“Você bem sabe”, disse, “que eu já fui malando. Somente estou regenerado. Dei bastante trabalho à polícia e, até, ao dono do morro.” Agarra o outro pelo colarinho da camisa e continua: “Mas nunca abusei de uma mulher que fosse de um amigo.”

Num gesto típico de pilantra, Juvenal colocou um palito de dentes no canto da boca – e inventou um pigarro. Deu um sorriso sem graça e balançou os ombros, como se fizesse pouco caso da raiva do outro.

“Me zanguei contigo”, disse Amoroso, sério.

E meteu um aço no abdômen de Juvenal.

Enquanto ia caindo, Juvenal disse, numa surpresa fatal:

“Você me feriu, Amoroso!”

Ao que Amoroso respondeu:

“Você me desrespeitou, mexeu com a minha nega.”

As garotas do bar ficaram desesperadas, histéricas, em pânico!

Uma delas implorou:

“Coitado desse homem, seu moço”, disse. “Se esvaindo em sangue!”

“Vocês não se afobem”, respondeu Amoroso, numa calma tremenda, “que o homem dessa vez não vai morrer. Se ele voltar, dou para valer.”

Acendeu um cigarro e virou-se. Antes de deixar o bar, porém, lembrou-se de pedir às meninas histéricas:

“Se o delegado aparecer”, disse, “vão se desculpando a ele por mim, ok?”

Tenho ouvido muito Moreira da Silva. Esse conto é inspirado na música “Na Subida do Morro“. Ontem mesmo, escrevi uma história baseada em “Conversa de Botequim“. Provavelmente, outros virão.

Conversa de botequim (conto)

22/06/2010

“Seu garçom”, disse Maneco, “faça-me o favor de trazer um cafezinho, sim?”

“Puro?”, respondeu o outro.

“Uma média. E um pão na chapa. Com manteiga à beça.”

“Sim, senhor.”

O garçom mal saíra da mesa – e Maneco já fazia um sinal com o braço esquerdo, pedindo para ele voltar.

“Dá para fechar a persiana daquela janela, por gentileza? Esse sol está de matar.”

“Claro, claro.”

“Olha”, continuou, antes que o garçom deixasse a mesa, “aproveita e pergunta àquele freguês ali sobre o resultado do futebol.”

“Perdão?”, exclamou o garçom, surpreso.

“Isso mesmo”, confirmou Maneco, “o placar do Corinthians. Perdi o jogo.”

***

Maneco chama novamente o garçom.

“Sim?”

“Peça ao seu patrão”, disse Maneco, “papel e caneta. Preciso fazer algumas anotações.”

“Papel e caneta?”, repetiu o garçom, sem entender nada.

“Isso, isso.”

Que sujeito mais peculiar!, pensou o garçom. De onde aquela peça tinha saído?

“E faça-me outra gentileza”, continuou Maneco. “Fila um cigarrinho para mim com o sujeito do balcão.”

Intrigadíssimo, o garçom atendeu os pedidos esquisitos de Maneco. Ao voltar para a mesa – com papel, caneta e o cigarro filado –, Maneco já tinha outra demanda.

“Há alguma banca de jornais aqui por perto?”

“Ali na esquina.”

“Diga ao jornaleiro que me empreste uma revista, um cinzeiro e um isqueiro.” Pausa e continua, grave: “Você faria essa delicadeza para mim, amigo?”

Admirado, o garçom coçou o cavanhaque! Cigarro, revista, cinzeiro. Afinal, quem era aquele maluco com todos esses pedidos estranhos? Mas há de se notar: apesar de doido, Maneco era de um charme e de uma simpatia devastadora. Não dava para dizer “não” a ele.

***

“Seu garçom”, voltou a pedir Maneco, “telefone a 743-3222. Ordene ao seu Moacir que me mando um guarda-chuva aqui no nosso escritório.”

“Quê?”, perguntou o garçom. Os pedidos de Maneco estavam ficando cada vez mais doidos!

“Seu Moacir, no 743-3222. Esqueci meu celular, entende? É para me mandar um guarda-chuva.”

Tentou ligar, mas ninguém atendeu. Voltou à mesa de Maneco, com a conta do bar. Ao ver a fatura, Maneco baixa a voz para ele.

“Seu garçom, me empreste algum dinheiro.”

“Como?”

“Eu deixei o meu com o bicheiro. Tive um palpite ruim…”

“Aí o senhor quer de mais!”, objetou o garçom. “Dinheiro?”

“Faça-me uma última gentileza, então”, pediu Maneco. “Diga ao seu patrão para pendurar a despesa no cabide ali em frente, sim? Volto essa semana para acertar.”

E foi andando para a porta do bar, num passo firme e confiante.

Conto inspirado na música “Conversa de Botequim“, escrita por Noel Rosa e Vadico, imortalizada na voz do sambista Moreira da Silva

Cravo-de-defunto (conto)

01/05/2010

Decidiu deixar os dias de galinhagem para trás — e virar um sujeito romântico. Mafê era a garota perfeita para estrear essa nova fase: bonita, inteligente e magricela. Exatamente como Amoroso gostava. Tinha um pequeno defeito, deve-se notar. Era brava. Mas nada que pudesse comprometer, Amoroso pensou.

Convidou Mafê para jantar. Quando foi buscá-la, levou um buquê de flores.

“São para você, linda.”

Ela se desfez como manteiga no fogo!

“Ai, que fofo! Você é muito romântico! Amei.”

Mas, quando viu as flores mais de perto, fechou a cara.

“O que é isso, Amoroso?”

“Perdão?”

“Você sabe que flores são essas?”

Claro que não.

“Sei lá, baby. Escolhi uma que achei bonita.”

“Isso é cravo-de-defunto!”

Amoroso deu risada, admirado pelo nome da flor. Mafê ficou mais brava ainda.

“Não é piada, tonto! Você devia ter trazido rosas, não cravo-de-defunto.”

Jogou o buquê no chão. E completou, firme e energítica:

“Idiota!”

Quando Amoroso, indignado com a atitude de Mafê, abriu a boca para retrucar, a garota já saíra do carro. Teve de se contentar em xingá-la à distância.

“$$%#$X!@”

Voltou aos bons dias de galinhagem. Era mais fácil assim.

E, dar novamente flores a outra garota? Jamais.

O álibi (conto)

29/04/2010

Bateu o telefone para o amigo.

“Marcão, preciso da tua ajuda.”

O outro pressentiu a encrenca.

“Manda a bomba, Dieguito.”

“Falei para a minha ex-namorada que eu viajei contigo no feriado. Se ela perguntar alguma coisa, você confirma, ok?”

Ficou confuso.

“Tá ficando besta? O que vai ganhar mentindo para a ex? Vocês não estão mais juntos.”

Dieguito explicou.

“Acontece que ela viajou com as amigas para a praia. E eu lá vou admitir que, enquanto ela estava no litoral, fiquei em São Paulo, fazendo nada?”

“Qual é a diferença? Ela já te teu uma bota, mesmo.”

Foi curto e direto.

“Vai me ajudar ou não?”

“Tá bom, tá bom…”

A história

Dieguito recomeçou.

“Então, ouve bem.”

“Como assim? Tem mais?”

Irritou-se.

“Claro que tem! Mentira boa é mentira elaborada. Ouve com atenção, para não ter perigo de dar problema, sim?”

Marcão já estava se arrependendo de ter aceitado o papel na trama.

“Nós saimos de São Paulo na quinta-feira à noite”, começou. “No seu carro. Fomos para a Baleia, na casa de um amigo seu da faculdade. Como o trânsito estava punk, chegamos cansados e fomos dormir. Estávamos em sete pessoas na casa. Todo mundo da sua facul. Na sexta, pegamos balada no Melancia’s. Você mandou muito, pegou três mulheres! Eu peguei só uma, mas era a mais bonita de todas. Moreninha de olhos azuis! Voltamos lá pelas 4h, porque um dos seus amigos deu PT. O viado vomitou no carro, tentou brigar com o segurança, fez o diabo. No dia seguinte, fomos para Camburi pegar onda. Você tomou um caldo, mas nada sério. À noite, fomos ao Melancia’s de novo. Dessa vez, você zerou. Eu fiquei com a mesma moreninha da noite anterior. Ficamos lá até o amanhecer. Na volta do Melancia’s, caímos direto no mar, sem dormir. Só dormimos lá pelas 14h. Finalmente, voltamos para São Paulo de madrugada, para evitar o rush do trânsito. Entendeu?”

Ficou em silêncio Marcão.

Dieguito continua.

“Ah, sim! Eu disse a ela, também, que nós vamos viajar no próximo fim-de-semana. Posso te contar o roteiro?”

Depois de um longo silêncio, o amigo respondeu.

“Você precisa de um psicólogo, Dieguito.”

E desligou o telefone na cara outro.

A mentira (conto)

24/04/2010

Explicou à namorada, num esforço admirável, por que não poderia ir ao cinema sábado.

“Vou descer para litoral com os caras.”

“Que caras?”

“Os mesmos de sempre: o Albino, o Bombinha, o Fred…”

Julinha não gostou nada da idéia.

“E não posso ir junto?”

Pegou na mão dela e baixou a voz.

“Veja bem”, começou. “Queremos fazer uma viagem como nos velhos tempos. Só os moleques. Para colocar a conversa em dia, tirar um sarro…”

Foi interrompido pela outra.

“E cair na balada?”

Zacarias quase fez um escândalo.

“Nunca! Nunca!”

“Não mesmo?”

Ele prometeu.

“É coisa besta, entende? Inocente. Só para matar a saudade.” Limpa um pigarro. “Domingo estou de volta, ok? Daí, a gente vai no cinema.”

Sábado

Não desceu para o litoral, como combinara com Julinha.

Na verdade, Zacarias foi num double date: a namorada do Bombinha estava recebendo uma prima de Porto Alegre. Segundo o amigo, a menina era um “espetáculo à altura do Cirque du Soleil”. Como uma cadelinha, chamava-se Baby. Claro, era apelido. Mas assim ela se apresentava para todo mundo.

E a noite foi, de fato, incrível.

Começaram no sushi, depois foram ao samba rock – e terminaram a noite num after no apartamento de Zacarias.

Baby era linda. Absolutamente linda. Usava um vestido branco, com laço. Quando Zacarias o tirou, sentiu como se estivesse abrindo um presente de Natal.

De manhã, Baby foi embora para Porto Alegre.

Zacarias tomou uma ducha, comeu uma pizza velha, passou perfume. Às duas, foi buscar Julinha, para levá-la ao cinema. No caminho, ia elaborando, mentalmente, a mentira. Mas, como veremos a seguir, preparou a história mal.

Saia justa

Ao chegar na casa da namorada, Zacarias foi de um cinismo exemplar.

“Oi, amor. Senti sua falta na praia.”

Ela fez a pergunta inocente – mas comprometedora.

“Você veio direto?”

Pego de surpresa, quase engasgou. Optou pelo “sim”.

“Sim, sim.”

“Sozinho?”

Desta vez, foi de “não”.

“Não. O Bombinha voltou comigo.”

Mas Julinha era esperta como uma raposa.

“Cadê a mala?”

Zacarias olhou para o banco de trás, na esperança de encontrar uma mochila. Nada.

“Diabo! Esqueci na praia.”

Ela tentou o blefe.

“É só pedir para o Bombinha trazer depois.”

Como um pato bêbado, Zacarias caiu direitinho.

“Boa ideia…”

Assim que terminou a frase, percebeu o deslize hediondo. Se o Bombinha voltara com ele, como poderia trazer a sua mala esquecidade mais tarde? “Merda!”, pensou.

Seguiu-se uma briga de proporções catastróficas.

Desabafo

Tomou uma bota de Julinha, para resumir a história.

Quando foi desabafar com o Bombinha, recebeu aquela bronca.

“Porra, Zacá!”, disse o outro. “Você não conhece a regra básica?”

Balançou os ombros, sem resposta. Bombinha continuou.

“Jamais diga uma mentira que não possa provar.” Pausa e completa. “Milôr Fernandes, cara. Isso é sabedoria.”

Zacarias concordou, lacônico.

“Pois é, pois é…”

E tomou um tapa na orelha do amigo.

Sr. Bigode (conto)

23/04/2010

Decidiu cultivar um bigode.

E não um qualquer – mas um mostacho digno de vilão mexicano. Daqueles que aparecem nos faroestes de Sergio Leone.

Quem não gostou foi a namorada:

“Vai arrancar esse bigode. Agora!”

Miguelito ficou injuriado com a bronca:

“Vai amolar outro, sim?”

A menina, porém, estava inconformada como o novo visual do namorado:

“Você tá parecendo um cartoon, Miguelito! Toma vergonha.”

“Não tiro o meu bigode e ponto final.”

Ela foi dura e profética:

“De bigode, não saio com você na rua. Promessa!”

E fez o sinal da cruz, para mostrar que não estava brincando.

As brigas

Durante uma semana inteira, o casal não fez outra coisa – senão brigar.

Josefina atacava, 24 por 7, o bendito bigode. Tentou, até mesmo, raspá-lo enquanto Miguelito dormia. Sem sucesso.

“Tá ficando maluca?”, pulou Migueleto da cama. “Aonde você vai com essa gilete?”

“Você sabe muito bem”, respondeu, numa frieza assombrosa. “Matar o sr. Bigode.”

Bateu com a mão no peito:

“Só por cima do meu cadáver! Só por cima do meu cadáver!”

“Então vem cá! Mato os dois num golpe só!”

Por precaução, Miguelito foi dormir no sofá.

Com a porta da sala trancada.

Eis que terminaram o namoro.

As últimas palavras de cada um foram:

“Enquanto você não tirar essa bigodeira horrível, nem precisa me procurar.” (Josefina)

“Então pode esperar sentada.” (Miguelito)

A festa

Ela confidenciava às amigas:

“O Miguelito vai ver só!”, dizia. “Quando ele perceber que mulher odeia bigode, e não conseguir pegar ninguém, vai voltar correndo para mim. De rosto lisinho!”

Dias depois, se encontraram numa festa da faculdade. Mal falaram “oi”.

Mas, é claro, de canto de olho, observavam um ao outro.

Foi uma surpresa tremenda para Josefina quando uma garota encostou em Miguelito. Foi lá, para ouvir de perto a conversa.

Menina: “Há quanto tempo você tem esse bigode?”

Ele: “Quase duas semanas.”

Menina: “E sua namorada gosta?”

Ele: “Estou solteiro.”

Menina: “Esse bigode te deixa com um ar tão perigoso…”

Ele: “Espera só até eu raspá-lo na sua orelha…”

Indignada, Josefina deu um empurrão na menina. Agarrou Miguelito.

“Ele é meu, ouviu?” Completou, baixinho: “Piranha.”

Miguelito abriu um sorriso implacável.

Igual ao daqueles vilões mexicanos. Que aparecem nos filmes do Sergio Leone.

Esquina (conto)

15/04/2010

Chegou com a bomba:

“Acabei de ver a Tamíres na rua.”

Chambinho entrou em choque ao ouvir o nome de “Tamíres”. Fazia poucas semanas que ela o deixara, alegando uma crise emocional. (O que, obviamente, era uma desculpa. Das mais deslavadas.) Enfim, Chambinho, que ainda gostava de Tamíres, travou ao ouvir o nome da ex:

“Onde? Onde?”

Seu amigo não teve sensibilidade alguma ao responder:

“Na esquina. Agarrada num sujeito.”

Pegou o amigo pela gola da camiseta pólo, num desespero tremendo:

“Como assim? Como assim?”

Na sua frieza de jornalista, confirmou a notícia cruel:

“Exatamente. Sabe a esquina da Cotoxó com a Padre Chico? A Tamíres tá ali, grudada no cangote de um homem.”

Ergueu as mangas da camisa, trincado de ódio:

“Eu mato a Tamíres! Ah, mato, mesmo!”

A faca

Foi, decidido, em direção à cozinha.

“Vou matar essa sem vergonha, hoje!”

E o amigo:

“Sossega, Chambinho.”

Mas o outro já estava abrindo a gaveta, para pegar o maior facão que encontrasse. Achou um adequado, daqueles de cortar pão, com serrinha e o diabo. Perfeito para cometer um crime passional.

“E aproveito para matar, também, o canalha da esquina.”

O amigo usou o próprio corpo para bloquear a porta da cozinha – numa tentativa de parar o possesso Chambinho:

“Deixa de ser maluco, Chambinho. Larga essa faca.”

Recuou, ao ser ameaçado:

“Tá querendo levar também? Tá querendo, hein?!”

Cotoxó com a Padre Chico

Desceu o elevador empunhando o facão na mão esquerda – sem se dar ao trabalho de escondê-lo sob a jaqueta ou no bolso da calça.

“Pelo menos, seja discreto, pô”, diz o amigo. “Esconde esse facão em algum lugar.”

Tomou mais um enquadro do Chambinho:

“Nem vem… Nem vem…”

Durante o trajeto da Cotoxó com a Padre Chico, a poucos quarteirões do apartamento de Chambinho, o amigo tentava dissuadí-lo do crime.

“Deixa para lá, Chambinho. Tá fazendo besteira.”

Em vão:

“Já disse que te furo também, ouviu?”

Ao chegarem na dita esquina, Chambinho deparou-se com Tamíres e o sujeito do cangote. Um agarrado ao outro.

“Sem vergonha!”, gritou, balançando o facão.

A menina tomou um susto daqueles; o sujeito do cangote, quase desmaiou de medo.

“Calma, Chambinho!”, disse a menina.

Mas ele não hesitou: ergueu o facão ao ar – e enfiou no próprio abdômen. Quando a ambulância chegou, já era tarde demais. Chambinho estava frio, como um presunto.

No enterro, a família e os amigos de Chambinho mal conseguiram chorar. Estava intimidados ante a dor maior de Tamíres, que derramava uma enxurrada de lágrimas no caixão.

E, quando o sujeito da esquina tentou consolá-la, Tamíres de um escândalo:

“Sai daqui! Sai daqui!”

Sushi (conto)

14/04/2010

Caiu do céu:

“Você não gosta de sushi?”

E ela, sem jeito:

“Pois é…”

Escobar até perdeu a palavra. Como alguém poderia não gostar de sushi? Isso era estanho, raríssimo – quase obsceno! Mas, já que a garota era bonita, respirou fundo e continuou a conversa. Tentou relevar o fato abominável. Não conseguiu. Trocaram duas ou três palavras e, logo, voltou a tocar no assunto:

“Me explica um mistério, Michelle. Como alguém pode não comer sushi?”

A outra balançou os ombros:

“É que não gosto de peixe.”

Tentou argumentar, num desespero comovente:

“Mas não é qualquer peixe. É salmão!”

“Tô sabendo. Mesmo assim, não gosto.”

O convite

Nervoso, Escobar olhou para os lados, como se procurasse por alguém. Primeiro, virou para a direita. Depois, esquerda; e direita de novo. Coçou o queixo. “Que maluquice”, pensou. “Uma menina bonita dessas não gostar de sushi? Onde já se viu?” Michelle tentou puxar papo – mas ele não conseguia parar de pensar no bendito sushi. Baixou a voz para a outra:

“Olha, vou te ensinar a comer sushi.”

“Como assim?”

“Isso mesmo. Gostar de sushi é uma arte. Ouve só.” Abriu o segundo botão da pólo, animado. “Nas primeiras vezes que você come, é ruim. Depois, vai melhorando. Lá pela quarta ou quinta vez, bum! Você nem percebe, mas já está viciado.”

Michelle ficou até assustada:

“Jesus! Como droga?”

“Nem tanto, nem tanto…” Confiante, fez o convite Escobar: “Então, vou te levar para o sushi no sábado, ok?”

Ela refletiu por alguns segundos. Respondeu, risonhamente:

“Sushi, não. Mas se você quiser ir numa pizzaria, eu topo!”

“Tá bom.”

Combinaram o horário, trocaram o telefone e se despediram.

Sábado

Escobar dormiu mal a noite da sexta-feira inteira. Era tamanha a sua ansiedade que, ao acordar, suava frio. Teve pesadelo: um sashimi gigante o perseguia, com um facão de churrasco à mão. (Em seu sonho, o sashimi tinha braço e mão.)

Olhou para o relógio: 7h05.

Encontraria Michelle às 20h30, no prédio dela.

Pegou o celular e começou a digitar uma mensagem:

Mich, infelizmente não vou poder sair hoje. Você é uma garota incrível, mas…

Parou por alguns segundos, à procura de uma frase que expressasse exatamente o que sentia. Saiu-se com o seguinte:

…mas não confio em quem não gosta de sushi.

Sem hesitar, apagou o telefone da garota da agenda.

Depois virou para o lado e dormiu. Tranquilo como um bebê.

Carinho (conto)

09/04/2010

“O seu carinho é gostoso. É raro homem fazer carinho bem.”

“Mesmo?”

“Sério.”

“Você tá só querendo inflar meu ego.”

“Juro! Meu ex-namorado, por exemplo.”

“O que tem ele?”

“A massagem dele parecia uma patada de urso.”

“Mas massagem não é carinho.”

“Ah, tá tudo na mesma categoria. O cafuné, então, era ainda pior do que a massagem.”

“Por quê?”

“Sabe quando você quer agradar um cachorro, e fica coçando a cabeça dele?”

“Sei.”

“Pois meu ex-namorado fazia isso comigo. Vê se pode. Cafuné tem que ser delicado.”

“Meu cafuné é bom?”

“Uma delícia. Sabe do que mais eu gosto?”

“Do quê?”

“Do jeito que você passa a mão no meu braço. Assim, com a unha. É muito gostoso.”

“Assim?”

“Assim mesmo. Quando você passa a mão nas minhas costas, é gostoso também.”

“Assim?”

“Tá ótimo assim… Foi por isso que terminei com meu namorado.”

“Por causa do carinho?”

“Exatamente. Se o homem não sabe fazer carinho, não dá para namorar.”

“Você está sendo meio exagerada, não?”

“Claro que não! Um homem decente precisa fazer carinho gostoso. Ter pegada é fundamental, também. Se ele for engraçado, melhor ainda. Adoro uma boa piada. Mas, é claro, ele não pode ser burro. Pelo contrário. É importantíssimo ser inteligente. Senão, já descarto na hora. Sabe o que mais não dá para aguentar? Barba por fazer. Pelo amor de Deus, o que custa passar o barbeador de manhã? Aliás, ele deve gostar das minhas amigas. Já te falei que elas são como uma família para mim? Depois, vou te contar a vida inteirinha de todas elas! Ah, sim: deixar a tampa da privada levantada é questão capital. Você sabe disso, né? E…”

[passos apressados]

“Ei, onde você está indo? Volta aqui. Ainda não terminei de falar as qualidades indispensáveis num homem. Ei, anda mais devagar. Devagar! Já comentei que abomino homens de passos rápidos?”

Ratola (conto)

28/03/2010

Lá pelas duas da madrugada, toca o interfone.

O dono do apartamento, Flavinho, anfitrião da festa, fica com preguiça de atender:

“Atende lá, Nêgo. Sim?”

Sob protesto, vai o Nêgo atender o interfone. Volta da cozinha e, num tom castamente informativo, anuncia:

“Tá subindo o Ratola.”

“Quem é esse tal de Ratola?”, pergunta Flavinho.

Silêncio na sala.

“Alguém aqui conhece um Ratola?”, repete o anfitrião.

Nenhuma resposta.

“Quem é esse filho da puta do Ratola?”, grita, num acesso de fúria. “Como você deixa esse miserável subir, Nêgo? Porra!”

Súbito, um pânico geral e unânime instala-se na festa.

As garotas, histéricas, choravam. Corriam de um lado para o outro, trancavam-se nos banheiros e nos quartos. É bem verdade que uns três ou quatro marmanjos, temendo a chegada do misterioso Ratola, faziam coro ao choro feminino.

E Nêgo tentava se explicar:

“Achei que era amigo de alguém, ué.”

Tomou uma bofetada seca de Flavinho:

“Você condenou todos nós, seu desgraçado.”

A expectativa

No apartamento de Flavinho, a chegada de Ratola era mais temida do que a do próprio Juízo Final.

Num desespero comovente, o Alemão correu até a cozinha – e bateu o interfone para a portaria:

“Não deixa o Ratola subir. Não deixa, ouviu?”

O porteiro, porém, foi fatal:

“Já liberei o sujeito.”

Em prantos, a namorada do Alemão sugeriu:

“Liga para a polícia, amor! Liga para a polícia!”

Respondeu num tom prefético:

“O Ratola já está no prédio, baby… Quando a polícia chegar, será tarde demais.”

Ouve-se, então, o inconfundível barulho do elevador. O clima ficou exaltado, quase apocalíptico, dentro do apartamento.

Numa demonstração escandalosa de covardia, o Alemão pensou até em pular do terraço. Quando os amigos o imobilizaram, tentou argumentar:

“São só seis andares. Eu aguento a queda, juro.”

Como não adiantou, insistiu, nervoso:

“Aguento mesmo, porra. Me larga!”

Súbito, toca a campainha.

O Ratola chegara.

Surge o herói

Uma tensão sufocante tomou conta de sala.

É verdade que a porta estava trancada. Mas um sujeito chamado Ratola, na vileza do seu nome, haveria de derrubar até uma parede maciça com implacável facilidade. Nem uma Bastilha poderia segurá-lo.

Flavinho baixa a voz:

“E agora?”

Ao que responde Alemão, ofegante:

“Agora a gente reza.”

E puxa uma prece, apertando a mão da namorada:

“Pai nosso que estais no Céu…”, etc etc.

Toca a campainha novamente.

A presença obsessiva de Ratola na porta criava alucinações e delírios coletivos. Era como se a própria Stasi estivesse ali no corredor.

Eis que, num gesto heróico e altruísta, ergue-se Nêgo:

“Eu vou abrir essa porta!”

Foi ovacionado como uma prima donna em final de ato! Ouviu-se o seguinte comentário de uma garota: “Que homem! Que coragem!” Só faltou lhe jogarem uma coroa de flores.

Pegou um atiçador de lareira e caminhou de fronte erguida até a porta. Quando desarmou o trinco, o Alemão desmaiou. Ficou ali, caído no tapete, como um falso defunto.

Num movimento sincronizado, Nêgo girou a maçaneta e ergueu o atiçador – preparado para acertar Ratola no rosto.

Teve uma surpresa espetacular ao abrir a porta:

“Léo?”

Ratola, aka Leonardo

No reflexo, Nêgo quase meteu o atiçador no pescoço do amigo. Segurou-se no último segundo.

“O quê você tá fazendo aqui?”

Inocente, responde Léo:

“Vim para a festa!”

“Então entra logo, que o Ratola tá chegando.”

Léo dasandou a gargalhar! Quando, finalmente, tomou fôlego das risadas, expôs o fato surpeendente:

“Eu sou o Ratola!”

As pessoas foram se aglomerando na porta, para ver o que estava acontecendo. Até mesmo o desfalecido Alemão, numa gesto repentino, levantou-se e foi lá.

“Como assim você é o Ratola?”

Explicou-se, com um total descaro:

“Quis fazer uma piada, só isso! Gostaram da surpresa?”

Silêncio no apartamento. Risonho, repetiu a pergunta:

“E aí? Gostaram ou não?”

Nem foi preciso uma resposta verbal.

A tapas, pontapés e pescoções, botaram-lhe para correr.

Como se fosse uma ratazana gorda.